quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O Ser poeta


Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.
Charles Baudelaire




Ser poeta é ser assim, esquisito, alheio,
é ser aquele cara que chega quando todos vão embora,
e que vai embora quando todos chegam, óculos e boné.

Ser poeta é assistir a vida de camarote, coisa da qual
o sujeito economizou tudo, roupas, sapatos,
para assistir os pores de sol, o desabrochar das flores, o sorrir
das crianças que habitam adultos e se embevecer numa contemplação
que não pode ser explicada, tampouco entendida.
É morrer de compaixão, é amar largamente, inadequadamente,
tão insuportavelmente exagerado e melado,
rir e chorar, ser pisado por rastejar junto aos vermes,
ser ridicularizado por muxoxar a língua dos anjos.

Ser poeta é ver seus amigos deitarem toda a sua malevolência
por sobre seu corpo coberto das chagas que mostra em busca de empatia,
com o requinte sujo de quem nem tão secretamente se entretem.
É receber uma pedrada em pleno vôo parado, sorvendo néctar,
ser arrancado do solo quando suas raízes finalmente contornaram as pedras,
é chorar em pleno passeio público e receber na boca o cachimbo fétido e babado
de quem não possui asas.

O poeta quer tanto sentar-se para tomar chá e ser servido apenas por estar ali,
onde todos são servidos, onde todos têm uma pausa, onde todos tomam chá,
nas ruas de Paris, Roma, Londres, Madri ou Santos, onde chegam os barcos de pesca,
onde se deitam os peixes no mercado, onde os avós vivem na eternidade de si mesmos.

O poeta quer ser reconhecido como sujeito pacífico, e ser respeitado dessa maneira,
sem precisar fazer esforços para se proteger contra o fogo armado e explícito,
sem precisar quase morrer para evitar contato com as mãos espinhosas que o seviciam,
nem com as palavras, tão ditas, que o diminuem e o afundam e o amarguram.

O poeta não quer escrever, ele quer libertar-se dentro da própria Linguística,
quebrar-se dentro da Expressão, da Comunicação que nada diz de si mesmo,
quer, desesperadamente, dissociar Significantes e Significados, romper com a Semântica, com a Semiótica, com a Filosofia, com Mrs. Dolloway, no corpo de baile,

com a Dialética, com os Discursos, os Ensaios, Petrarca, Dante, Cecília Meireles:
quer quebrar os ossos últimos de Augusto dos Anjos no Pau D’Arco, parar de render
homenagens aos profetas e seus seguidores, parar de pagar impostos, mudar-se,
ir-se embora e morar na praia, mais precisamente dentro da sua concha, abrir-se ao mar,
e nunca mais ser importunado por causa da sua constituição gelada de molusco...


Francisco Vieira
30/08/10

Noli me tangere



É impressionante a visão do teu reinado:

onde tua voz tonitruante, embora baixa, alcança,
tudo se faz o silêncio e a obstinação da besta apavorada.

A quem te interpela o que queres esconder,
teu olhar metálico e bondoso cala, quiçá emudece,
numa curta cãibra eterna e dolorida, a língua.

Não dizes a ordem que obedecem todos que te ladeiam,
matando fundo quem ousa contra ti se inquirir,
com as armas mais vis, mais desprezíveis, mais procrastinadas:
a dúvida, a incredibilidade, a intriga muda...

Nessa tirânica passividade onde gordamente te sentas,
onde pouco expressas e sentes, ou falas,
morrem esmagadas a espontaneidade e a alegria alheia.

Embora não seja essa a visão trêmula e irritante,
que cega todo olho humano e comum:
mas a tristeza abismal onde calcas toda a tua arrogância.




Francisco Vieira
30/08/10