sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Bola





Sou descrente, falei, enquanto ela,
no seu sorriso, inundava de luz.
E tem mais: sou um embuste,
enquanto ela, sorrindo, coloria o dia,
como quem enchia a tela de aquarela.
Minhas pétalas são apenas folhas modificadas,
e não têm cor, apenas respondem ao seu estímulo
(sorria, mas não era uma continuação:
um sorriso dentro do outro, como ondas)
de maneira que a todos encanto
com uma mentia cheirosa, adocicada.
Então seu sorriso morreu fundo no meu cálice.
Aceito, desabrochei tranquilo, esférico.


Francisco Vieira
22/01/05

Haicai Deformado






Vislumbrei a mesma química
coexistindo nos ferros direcionantes do bonsai,
e na vontade da mãe de Jean Harlow.



Francisco Vieira
09/11/00

Contato





Sou solúvel, é meu destino,
dissolver-me nas crenças do menino.
Não espero nem desespero,
desesperar é esperar.

Antes porém do contato dissolvente,
eu já desaprovava o desgosto da dissolução,
confundido no meio líquido da dor,
liquefeito, desparticularizado, neutro.
Estado confuso, homogêneo, então simples,
na vida comum dos meios fios, meios solventes.
Detergente. Água com óleo digerido.
Assim brindo sem entusiasmo minha taça,
volvo à sacada e, retido pela murada,
derramo o conteúdo borbulhante na calçada.



Francisco Vieira
30/12/04

Cotidiano





Desacelerei o passo
(sim, sem me preocupar
com a energia que foi
necessária para dar
tal velocidade à marcha,
na verdade despendendo
mais energia ainda)
você atrás de mim
(como pudemos deixar
de notar meu passo
sempre à frente de nós)
e a porta já fechada
quando eu chegara
(nenhuma pressa, nenhuma
que advenha de tal
motivo: eu não querer
estar do seu lado)
choverá hoje?


Francisco Vieira
26/02/05

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Caim






A Ricardo Vieira



O tanto que reclamas do preço
daquilo que não te foi dado,
é do tamanho exato da resistência com que recebes
qualquer gentileza, qualquer ato, ou palavra,
de amor.

Quando antecipadamente, no início de qualquer
discordância, tu levantas ameaçadoramente os braços,
diante de ti nenhuma alma boa permanece,
nenhuma gratidão, nenhum acolhimento fica,
para escutar-te o brado atroante.

Embora te saiba sofrendo de um mal que só existe
dentro do teu peito - e como existe,
não posso ser contigo a pessoa que me pedes que seja.
Não me caberia nesse papel, nesse lugar,
não seria feliz, não seria em fim, eu.
Eu me recuso a dar-te, em primeiro lugar,
qualquer coisa que não seja a minha única verdade.

É, mas no alto desse precipício onde descanso, tu não estás presente.
Sinto isso num suspiro, fundo, que chega na minha bexiga.
As paragens a que assisto agora, não vês ainda, meu irmão.
A lágrima que cai, vem brincando na minha pele, se rolando,
se fartando do movimento em que foi lançada, escorrendo,
alcança meu peito que a absorve, em mais um outro suspiro.


Francisco Vieira
24/12/10

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

"Questionário






Você naturalmente é contrária à prostituição.
( ) Sim ( ) Não
A prática da prostituição é o ato mais vil e baixo.
( ) Sim ( ) Não
A prostituição está veiculada ao tráfico, às armas e drogas.
( ) Sim ( ) Não
Monotonia pode levar à prática da promiscuidade remunerada.
( ) Sim ( ) Não
Você é a favor da prostituição.
( ) Sim ( ) Não
Através da prostituição o homem exalta-se.
( ) Sim ( ) Não
A prostituição constitui em crime contra os bons costumes,
a moral e a cidadania.
( ) Sim ( ) Não
Não é verdade que prostitutas de luxo só andam em vestidos de grife,
carros importados e perfumes exóticos e lingeries pecaminosas.
( ) Sim ( ) Não
Nem você nem seu marido, vocês nunca praticaram a prostituição.
( ) Sim ( ) Não
A prostituição é uma prática libidinosa e luxuriante.
( ) Sim ( ) Não
Tem prostitutas as quais você admira.
( ) Sim ( ) Não
Você admitiria uma amizade com a prostituta.
( ) Sim ( ) Não
A prostituição é um ato clandestino, de vandalismo, de banditismo proibido.
( ) Sim ( ) Não
Você liga prostituição à imaginação de líquidos pouco fluidos.
( ) Sim ( ) Não
Você tem sensações que não sabe descrever, ao conversar sobre prostituição.
( ) Sim ( ) Não
A palavra prostituição faz meu corpo vibrar.
( ) Sim ( ) Não
Você já praticou o adultério?
(Não somos católicos, mas queremos saber.)
( ) Sim ( ) Não
Mais de três homens frequentam a minha cama, e não me pagam.
( ) Sim ( ) Não
Você se considera prostituta.
( ) Sim ( ) Não
Você já se apaixonou por uma prostituta.
( ) Sim ( ) Não


Muito bem dona Yacón Conceiçõn Braga, entraremos em contato caso seja escolhida.”


Francisco Vieira
23/12/10

Estandarte






Eu vinha na prata de ala, onde tudo era mais gigante,
perambular, pelos escrutínios de uma nova era,
pairando no ar pulsadamente como um aeromodelo
do sim, do não, do talvez, do quem sabe...

Não me ousas ordenar escolher-te...
se sois um, posto que te encontras no infinito,
vendei meus olhos, perambulei por ali, para me perder,
escolhi a esmo e entrei, e cá estou sem nem querendo saber,
que caminho me carrega para o infinito!
Não quero saber o não sexo do meu bebê!

Pelo ouro de ala, desfilando, líquido, grosso, morno,
um perolado mar de esperanças, de possibilidades,
rumando em busca de um prazer desconhecido que os impele,
os fascinam, lhes cegando visões não mais necessárias,
árias, música, dança, corpo, suor... Sensualmente!

(É porque quando você para assim, e me olha, me vê,
acolhendo meu momento de prazer dentro dos seus braços,
eu atinjo um nível de emoção cativantemente desconhecido, alto,
e é aqui exatamente que eu quero ficar com você.)

Ah, Ismália emerge das águas e se dispersa
na luz que vem da sua irmã, beijando,
amparando a queda, amparando o vôo,
da diafaneidade dos sentimentos
que me inspira a construção desse poema.

Francisco Vieira
23/12/10

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Pérola





Estou no lugar onde a tristeza se diluiu,
ou choveu, não sei ao certo dizer,
já que me ocupava de um pouco desse mar que eu
conseguira chorar.

Mas agora olho assustado para tudo,
e aquela imensidão negra que se instalara no meu céu,
dissipou-se, deixando uma leve névoa branca luzidia.

Para onde foi tudo e tanto?
Onde estás Arthur?
Em que noite sombria a tua alma,
gentil possuidora da minha, se abrigou desse temporal de emoções?

Estou na calçada, do lado de fora,
molhado, as tintas negras escorrendo,
trazendo a tona a minha própria sombra que nunca vira.

O que me impede momentaneamente de sair gritando,
dançando, bebendo, gargalhando, amando,
é o pouco medo do que eu farei com tanta coisa boa,
no mundo aberto, escancarado, livre, aventureiro...

Francisco Vieira
20/12/10

sábado, 11 de dezembro de 2010

Werther



Eu sou Verlaine.
Onde estás Arthur?
Em que noite sombria a tua alma,
gentil possuidora da minha, se abrigou desse temporal de emoções?

Eu sou a tua alma da minha,
com passagem livre entre os corpos
que se agigantam no emaranhado de paixões,
consumindo-nos os espíritos e o corpo, que já não se distrai.

Eu sou você por toda a eternidade.
No piso frio do chão em que desistimos
de nos sustentar,
onde caímos exaustos os nossos corpos
e livres essas almas, a que já não pertencem mais nada...

A nossa poesia jaz mole, sem tônus, pelos ares a girar.

Francisco Vieira
11/12/10

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Nódulos





A André Gonçalves
Os arcebispos já procederam à votação?
enquanto na terra a manada estoura,
e a pele vibra na energia que aquela força tanta produz
em meio de pássaros que se perdem em vôo,
na surpresa abrupta de se entrar na cachoeira de uma vez.

São doze aqueles que sentam e pacientemente aguardam?
a lava fecunda que num estouro ejaculatório
traz à superfície a riqueza e o calor de uma entranha foguinolenta,
áspera, rude, bruta, brilhante!
Estrelas...

Eles recebem a ficha de condenação todos num prato de prata?
a fragrância leve que inspira as massas a tornarem-se
perfumes, na ampla ferocidade das temperaturas,
que movimentam-se vigorosamente, esfriando aquele sêmen vivo,
tornando-o terra, com rega constante.

Terá fim algum dia o sofrimento da vivência desta cena?
a semente que nasce e frutifica, povoando a terra, revoendo a terra,
desenhando a camada externa de um útero proibido, protegido
onde só lá, na mata virgem, poderiam nascer os espíritos,
num seio morno e úmido, que abriga, sustenta e cria.

Assim a vida se deu, assim os rios encontraram o mar,
numa praia tranquila, deserta, coroada de sol, de umidade, de sal...


Francisco Vieira
10/12/10

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Aquarela





Eu queria ser um cisne,
para em teu torso de lama singrar,
para mergulhar no teu mais fundo submundo,
te reconhecer assim inteiro
como quem assiste ao parto de um equino:
Misiáticum.

Explasnáuticum.
Espasmos ciliares das catarses mais dramáticas
da dança que dispensa o uso do corpo,
onde a alma encarna o corpo que controla.

Um peixextetulárium plana,
arvorizado e magenta, dentro do ocaso, espletindo,
consumindo um ar romantizado, rosa, doce, morango,
em cima do altar que é o ventre do seu companheiro.

Roselásticum Plenus se avivam, saindo de suas conchas,
se onde encantam pelas florestas tropicais em tons de azuis,
sendo vermelhas, se parecem lilases, da luz cobalto,
que às vezes escurece as paisagens por aqui...




Francisco Vieira
06/12/10

terça-feira, 30 de novembro de 2010

Monjolo



Eu acredito em mágicas,
e coisas e pessoas especiais na vida,
a tudo que eu me busco merecedor,

entre a terra e o céu,

que possa me favorecer a felicidade.


Eu suspeito porque não consigo entender

que os mares, nos domingos ensolarados,

são mais verdes do que nunca,

mas só ao entardecer.


Acho possível e considerável a realidade que vai

revelar-me o astro lá em cima, outra realidade, atrasada,

e que bem possivelmente estará apagada.

Por isso vivo neste lugar por um instante que é devanescente:

entre os últimos raios solares, a briga com as trevas arrogantes,

que chegam tomando por direito seu espaço, naquela equilibrada luta

entre forças igualmente ameaçadoras e poderosas,

- pois que sob a luz diluída as cores se mostram mais sensuais,

mais apelativas, as fragrâncias liberadas no frescor do fim da tarde,

onde é maior a umidade de tantos perfumes e aromas,
que
sentir-se úmido, lúbrico, no meio destes matos, destas flores,

sentir a pele pinicar sendo picado por diversos insetos pequenos,

enquanto os instintos inflamam a carne fremente, desejosa, espasmódica,
no cio dos animais, pode ser deliciosamente delirante...



Francisco Vieira

30/11/10

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Terra





E você que nunca ardeu,
de que valeu guardar o corpo pra mim,
que o consumirei
lenta
e dolorosamente,

Que junto com meus escaravelhos penetraremos fundo suas carnes,
corroendo,
despindo-lhe até os ossos de um corpo que você achou que era seu,
como pode lhe negar amor, vida, movimento, graça?

Por que você destruiu o monumento que eu própria ofertei?


Francisco Vieira
29/11/10

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Montesquieu




Eu não estou em mim:
estou em, estou algo que avoesço, de repente de rodopio,
independentemente de qualquer ponto de onde eu pudesse tecer
minha trama de movimentos que em nada tocam,
nada pesam, nada sopram.

Que se subsistem apesar das contradições que as constroem,
e que se dispuseram, imperativamente, se auto acolherem,
nas tramas roucas do meu destino!

Vades, gentis almas livres, no vento, incessantemente,
para que possais viver sozinhas, no tempo passado,
se reconhecerem, se reencontrarem, se reorganizarem,
para que possamo-nos reencontrar, no futuro, de qualquer maneira,
porém mais livres, mais fluidos, mais aquáticos, mais luz!

Francisco Vieira
26/11/10

Ulisses





Eu estou ardendo as costas nuas sob a luz de um novo sol,
que descobri suportar, desde que eu decidi despir-me,
desde que eu decidi olhar na direção que meu coração apontava...

De ti eu não tenho uma simples lembrança, que me invade o pensamento,

numa torrente tão próspera onde não cabe nenhum pensamento outro
- o teu cheiro entranhado na minha pele, entre as dobras, sob as unhas...

O peso do teu corpo sob aquele abraço, onde medimos tanta força,
ainda posso sentir nas minhas costelas, ressentidas de tanta proximidade...

A pálpebra que se pisca, entregue, no olhar não todo aberto que eu fecho,
sob meus lábios, num beijo pousado, te veneram, dessa forma, a alma...


Acima de todo sentimento que me possa resumir porcamente como saudade,
o teu rosto com o sorriso maroto com que sustentas o meu olhar, me cega,

esperando francamente que nada mais possa me fazer pensar em algo que não seja tu.

Circulam ainda na minha organização corpórea, nos meus dutos,
os líquidos que teu corpo me dera e que eu porventura pude sorver...

Ainda assim não te amo, já domino esta fera:

ando, contigo, ao teu lado, por onde formos que quisermos ir juntos,

ando sozinho com outras presenças, outros devaneios,
outros nadas,
porque sei que além poderemos nos reencontrar.

Em toda a plenitude de nossa liberdade.



Francisco Vieira
26/11/10

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

A flor




A flor balança ao vento,
nascida simples da brutalidade
orgânica e podre do húmus,

sem se dar conta de que é de água,
sem se importar porque reflete a luz.

O coração precisa ultrapassar a humildade
para chegar a refletir a luz.

Francisco Vieira
03/09/2010

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Parnaso



Como é mesmo que você vem me dizendo quem eu sou?

Não dê você as desculpas que o outro quer ouvir
mas que não são as suas exatamente
pois estará dizendo algo de você mesmo ao outro
que vai se afastando de você próprio
levado, mão nas costas, pelas suas falsas máscaras.

Lamente, um pouco a cada minuto, pelo menos,
o fato enlouquecedor de ser uma neurose controlada
-durante poucos anos-
e depois viva o resto da sua vida comemorando o fato
de não precisar vivê-la.

Ame, durante anos, décadas, e desame, num segundo,
sem a dificuldade de ter de carregar nos ombros
a compaixão desesperada de não desagradar o outro.

Eu digo quem você é porque eu penetro no verdadeiro
espírito errante das palavras, criando a partir dele, enquanto escrevo,
situações teatralizadas pelos elementos dramáticos, plásticas,
onde cada criatura verá, dependendo do ãngulo,
da altura, do lugar, o próprio reflexo de si mesmo
e que mesmo eu jamais poderia ver.


Mas ainda assim,
você não saberá dizer quem você é.

Francisco José
02/11/2010

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Pétala



I



Eu de pedra, tomando uma ducha de pedras,
a areia fina que se desprende de mim correndo suja,
pelo ralo de ar no fundo do box de água,
onde eu respirava som, bebia fogo,
somente uma coisa me impressionou:

havia jasmins nos jardins, pelas janelas...





II



Deixa eu falar mais ainda uma única coisa, além, sobre reflexo:
eu pretendo aprender a olhar no meu olho e enxergar a mim mesmo, perdido, lá no meio
dentro do vendaval de loucura em que se submerge...





Francisco Vieira
21/10/10

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Aasas






- E como está teu coração, alguma coisa te amargura?

- Nada além da vontade que o toma de que chegasse alguém,
assim do meu lado, alguém que perguntasse das flores do meu jardim.

- Elas estão bem, as flores?

- Espetaculares! Se esse alguém me chegasse hoje assim, de surpresa,
e eu o levasse a vê-las, ele as veria no esplendor da sua beleza e frescor.

- Também eu sonho ver um jardim quase que encantado
pelas mãos delicadas com que o jardineiro amorosamente as cuida,
que as ama uma por uma, cor por cor, canteiro a canteiro.

Os namorados pararam, viraram-se e olharam para dentro um do outro,
com a aquiescência amorosa de quem deseja e oferece o peito nu.
Os pássaros ao redor calaram-se, e assim as águas
e a gleba inteira calou-se
para ouvir a respiração uníssona de dois corações que se encontraram,
e que agora se quedam na contemplação eterna de quem se quer o outro.



Francisco Vieira
10/10/10

domingo, 10 de outubro de 2010

AvaGardner



Em algum nível você se mostrou disponível,

e isso aqueceu uma parte muito puramente virgem do meu coração
e eu enlouqueci com o fato de não mais conseguir enxergá-la no olhar
que foi se apagando de algum foco de uma incerta direção
de dentro do seu coração.

Um clarão em que duas imensidões puderam reconhecer-se profundamente,
n
uma tempestade no meio da noite em alto mar,
a amplidão de espaço e poder do outro
defronte ao outro
num momento de luz e claridade de duas grandes massas de energia,
mas que não se pode ficar

aceso para sempre, já que cegaria os olhares que não
suportassem
ficar sem olhá-la fascinados,
nem por um instante sequer...



Francisco Vieira
10/10/10

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Onze mil novecentos e noventa





Eu quero voar.
Ao bater as asas

que devo fazer?
Me jogar?
De onde?

Estou entre o ontem e o amanhã, mas não no meio, no presente...
Que medo eu tive agora de parecer um lagarto, e passei que nem um cisco
pelo olhar das pessoas...

Qualquer lugar deve ser improvável que eu esteja,
conquanto me busque.

Nada nem ninguém há de me encontrar.


Francisco Vieira
01/10/10

domingo, 26 de setembro de 2010

Eu não sabia que a Conceição ia me bater




Eu não preciso mais das tuas tetas para me alimentar,
eu junto coisas desconexas, desconjuntas,
para me ameaçar com a prodigalidade de um evento
díspare
que possa me transportar quilômetros daqui.

Nesse momento a vida na encruzilhada me pareceu ameaçadora,
agora que não tenho ninguém em quem me escorar,
as minhas carnes todas e as vísceras sendo arrancadas
pela força mandibular de uma fera na ânsia assassina esfomeada.

E digo que caminhei à toa, por aí, o vento no rosto e cabelos esvoaçando,
sem nenhum pudor em não ter nenhum constrangimento de não saber ao
certo
o meu destino - a procura não é o lugar onde se possa ir,
mas onde se possa estar, ficar, permancecer, independente de tudo,
que só é possível medir o valor quando despertado dentro de si do
indivíduo,

que passa a saber ao certo o que é sentir-se em liberdade...


Francisco Vieira
26/09/10

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Fruto da Paixão





A Elmo Serra Santana





Eu no fundo, carrego escura e dura a polpa da vida.
Atravesso dentes que me mastigam, estômagos que me fervem,
poderosos e absorventes tratos intestinais, e caio no solo defecado,
mas despertado por esse processo que me livrou da casca mais grossa no exterior,
e então agora posso absorver a umidade que vai dar vida ao princípio que eu carrego,
e que se transformará na planta aos cujos pés assistirei seu universo de nascimento,
crescimento, reprodução e morte, derretendo lentamente no meu processo contínuo lento.

Eu sou de luz!
Tenho sabor a cheiro de mar, horizonte, sol, areia e concha quebrada,
sou de amarelo, diáfana, flutuando nessa polpa minha própria delicadamente,
e meu cheiro inspira um beijo,
e envolvo com a minha leveza que enleva,
conservo-os numa acidez equilibrada, atípica dos ambientes digestíveis,
e sirvo apenas e humildemente às caras sementes às quais ofereço, seduzindo,
com meus aromas e sabores ácidos, picantes, e adocicados...

Eu sou quem se virou para dentro, dando as costas duras para o que não
fôsse–me eu mesmo, no escuro, assistindo esse balé de inquebráveis cascas,
que dançam dentro de uma bolsa de gel adocicado de bolhas dentro de bolhas,
virar uma ansiedade coletiva de se romperem, de cumprirem seu destino,
quanto estivermos todos muito maduros, então a luz vai entrar, me completando,
ao me clarear a visão de tudo aquilo que eu sempre acreditei que realmente houvesse,
os quais eu ofereço, no solo, rompida, a todos os animais e insetos que vierem
para libertá-las e depositarem-na no solo que lhe servirá de útero de terra.

Eu sou aquele que só pode ir para cima, porque quer, anseia e procura,
chegar em lugar nenhum, só pelo prazer de, na mais completa cegueira,
avançar sempre, sentindo apenas o prazer de buscar e conseguir,
abrindo meus braços que vão agarrando e se enroscando em todas as minhas conquistas,
dando-me suporte para receber a força que me vem lá da raiz, impulsionando,
rodopiando, cavalgando o nada, sentado no dorso da profunda e enigmática inexistência,
escalando o próprio futuro, deixando possibilidades de vida em cada oportunidade,
em cada lugar, em cada inspiração que eu conseguir, que eu galgar, até me faltar
a energia que me impulsiona da raiz, e eu parar, dar o último suspiro, e descansar enfim.

Eu me abro, ao espaço onde o ar acode interessado, o meu aroma,
doce, interessante, sedutor, cheio de luxúria maliciosa,
um cheiro vermelho de paixão, que incendeia e reverbera a atmosfera ao meu redor,
atraindo para o meu cálice todo inseto que quiser se lambuzar de aroma e doce,
os quais eu ofereço por conta do meu grito sensorial berrado,
e sacudindo-se meus estames e carpelos, enfim me engravidar, quando então
eu me abandonarei externamente, concentrando-me no meu ventre que passa
a existir por mim, que já sequei toda, durante o processo até a queda no solo.






Francisco Vieira
23/09/10

terça-feira, 21 de setembro de 2010

O Poeta




Bem, para vocês que não me conhecem, eu sou o Poeta,
nascido de catacúmbicas lembranças, instado a ser por avessos e chuleados,
alguém que não sabe muito bem e exatamente o que faz,
como se imagina,
e cuja sorte nem sempre tem pássaros que não sejam negros e pestilentos a segui-lo.

Sim senhores, este sou o Poeta e,
como o poema tem forma e a vida não,
como os girassóis cumprem sorridentes o seu destino de assistir ao sol,
as abelhas lotam excitadas, de mel, as suas colméias,
passarinhos terminam os seus ninhos, esperançosos,
quando tudo é mais tépido e úmido, e os dias mais compridos,
o Poeta muitas vezes está no quarto, vivendo as dores que lapidam pedras em carne,
cuspindo seus pulmões de quando em quando.

O Poeta sou esse,
quem cria versos como quem se enlouquece, se autoflagela,
respira fundo ainda quando a mão pontuda da dor lhe esgana,
resgata a luz para onde ainda havia treva dentro de si:
o Poeta, eu, é aquele que se revela as entranhas a luz do dia.

Portanto, quando disser das pérolas e das turmalinas,
das catleyas e das rosas, dos beija-flores, das borboletas,
espalhando uma sucessão de cores e aromas e texturas,
lembrem-se
aquilo é o sangue negro, que o poeta carrega nas veias e o enche de dor,
transubstancializado.




Francisco Vieira
21/09/10

Emeraude



Nos instantes em que nada anseia ser dito,
quando há apenas o sentimento que precisa e se quer expressar,
a receita sugere o uso das palavras com parcimônia.

Como as claras que se batem até a neve,
e que sustentam toda a leveza da mousse,
palavras servirão de veículo às ideias,
que serão sorvidas delicadamente,
e se depositarão, esperando, calma e fracionadamente,
por toda a língua, espalhando, o sabor do chocolate.

Isso, claro, quando o olhar não mais for excelente
em revelar a real paixão das intenções,
quando elas soçobram no patamar de serem inundadas
por lágrimas que chegam de saveiro, catarticamente,
quando se experimenta o crème brûlée.




Francisco Vieira
20/09/10

domingo, 19 de setembro de 2010

Diálogo de gramáticos





- Acabei de sair de uma situação
onde eu era uma subordinada adjetiva restritiva, cansei.

- Ah sim, eu também agora procuro
alguém que seja coordenada comigo na vida.

- É mesmo?
Posso ser sua sindética?

- De uma forma gentil preciso dizer que não,
eu procuro outra assindética.




Francisco Vieira
19/09/10

Superfluidade


Morreria de qualquer jeito, morreria.

E mesmo que eu me houvesse sobrevivido,

inda assim morreria,
porque é igual a toda a tristeza do mundo,
reunida,
a dor de não ser aceito pela mãe.

Então eu não nasci

mas eu mesmo, quase, me matei.




Francisco Vieira

19/09/10

sábado, 18 de setembro de 2010

Zeelia




Eu não quero mais amar a flor,
que se escapole do cálice depois de tempos aberta,
porque se dá longamente ao sabor da brisa,
que se brinca dela desconjunta enquanto vai ao chão...

Eu não quero mais amar a flor,
cujos veludos se escondem mais escuros,
e da timidez das suas reentrâncias e concavidades perfumadas
conclamam abelhas excitadas de desejos luxuriantes...

Eu não quero amar a flor,
que aromatiza as gotas de orvalho sobre suas pétalas,
só por brincadeira, por criatividade, por investimento,
e que soltam no ar os perfumes recolhidos em cada bordado sensorial...

Eu quero amar a flor,
essa criatura diáfana e aquosa, tecida em perfume e maciez,
que me espanta a tristeza e me põe pleno e feliz, radiante,
mas que se solta a alma em essência, suavidade e carmim...




Francisco Vieira
19/09/10

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Vida





Eu,
que já me senti superior a ti,
que já experimentei a loucura absurda da possibilidade remota de ter te vencido...

que fui cansando e vendo com cada vez mais clareza onde estou:
aqui no chão
de barriga exposta as tuas mandíbulas poderosas,
as patas enormes me prendendo braços e pernas,
enquanto vou calando meu último grito,
no aterrorizante olhar impassível com que me fitas
- eu peço somente isso, numa última tentativa de negociar nossa dívida:
Não tenhas pena de mim!




Francisco Vieira
07/09/10

Delfinópolis VIII


Cheguei á fonte muito cansado, no alto do morro,
subindo as cachoeiras inclementes, escalando
entre mordidas e picadas, e tudo parece tão silente
que me envergonha a respiração gulosa com que mordo o ar.

Por entre o capim mimoso surge a água tranquila
que escorre docemente vinda do ventre profundo da terra,
até o primeiro e pequeno dique, ali, onde se formou um jardim subaquático,
com peixinhos alegres nadando entre espirais de algas,
e pedaçinhos de argila salpicando o fundo branco marmóreo.

Cheguei quando a dona da casa não estava, mas trouxe presente:
uma sombrinha florida, da altura de um palmo, feito com bambu,
já que o ouro seria o único metal bem vindo aqui.

O presente do ano passado está lá, do lado de fora da casa,
uma sacola de compras, exatamente como eu o deixei.
Os outros presentes também estão lá, todos enfileirados.

Aqui é um lugar onde eu preciso voltar sempre.
Passarinho voou, avisando que ela chegaria tarde,
e se foi, de volta para a sua solidão junto de outros passarinhos,
nas árvores onde descansam o afã da caça e do vôo constantes.

Eu vou descer o caminho por onde as águas se vão apressadas,
não antes primeiro de descansarem naquele singelo jardim,
recém nascidas, recém escapadas, recém iluminadas, recém respirando...
esperando firmarem-se para a longa caminhada até o oceano.



Francisco Vieira
06/09/10

Delfinópolis VII


Écologique

Ai dona Mutuca!
A senhora passa a vida inteira aqui,
bebendo aguinha, esperando chegar
um animal de sangue quente.
(Tantas como você morrem sem tal chance na vida,
o ápice da sua curta existência.)
Aí chego eu, da cidade, ofertando minha canela doce,
mato você com um tapa, e jogo seu corpo na água
que agora lhe bebe.


Francisco Vieira
06/09/10

Delfinópolis VI


Cachoeira



E se eu pudesse criar um funil com fogo na ponta menor,
que fosse capaz de receber o jorro do vento
e, ainda assim continuar aceso,
que criação seria essa?


Francisco Vieira
06/09/10

Delfinópolis V


Diálogo




Fran:
- A gota de veneno que não te mata é a mesma que me cura.


Minisa:
- E a gota de veneno que não mata ninguém, é uma farsa?
Qual é o oposto do veneno?
Ou será que o veneno não tem concorrentes?



Francisco Vieira
05/09/10

Delfinópolis IV


Futuro


À Minisa Napolitano



Existe aquele momento pequeno em que ficas jogado no ar,
e cais na sela que sustenta teu corpo frágil, mole, nu,
até que o cavalo pouse novamente no chão íngreme e pedregoso da descida feroz,
que em vão tentas enxergar na escuridão viscosa, por onde és levado,
quando geralmente a pedra onde ele fixará a pata,
antes do próximo passo, não é aquela que escolherias,
entre a tontura do trote vigoroso, quiçá de lado, escorregando,
dentro da insegurança da queda e a força do lombo que te sustenta.

Nessa inevitabilidade, simplesmente soltas o corpo, de olhos fechados,
respirando, abdicando do medo e cedendo ao prazer, e abrindo-os novamente,
desejosos de conhecerem o caminho, o cavalo retribuirá com mais dança
a liberdade que dás a ele.


Francisco Vieira
06/09/10

Delfinópolis III


Ladrão


Eu tenho buscado olhares.
Fico à espreita quando alguém passa
e insisto até ter retribuído o olhar.
Sim, eu os roubo, mas porque ninguém mos dá.


Francisco Vieira
04/09/10

Delfinópolis II


Diatomáceas



Por favor não me segure,
sou nascida entre a pedra e a água,
nada me retem, nada me prende.

Vá, por favor me solte,
nasci de forma a ser alada,
por dentro da água onde existo

vá, deixe-me ir, que o sabor
da corrente vai depositar-me onde
bem será melhor para mim.

Quem sabe assim poderemos nos reencontrar...


Francisco Vieira
04/09/10

Delfinópolis I


Silabada



O melhor de se ter um amigo hétero
é deixa-lo enquanto ele se arranja com aquela menina,
e, longe da visão dele,
ir ao encontro do rapaz que te olha em segredo
e para o qual a sua ereção se ergueu.


Francisco Vieira
04/09/10

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O Avesso do poema (chama-se flor, do lado direito)

A realidade exterior construída pelo indivíduo,
parte da própria realidade interna,
moldando o mundo em sua plasticidade exata,
e nele interagindo de forma totalmente integrada.

A loucura é uma força que existe, uma energia, uma luz
que, se o indivíduo, dentro de si próprio, a contiver estagnada,
incitará seu crescimento, mais e mais, e a pressão que ela fará no interior
alterará a realidade interna que crescerá para acolher aquela massa.

Com o sujeito interno e sua realidade alterados, o indivíduo
vai tendo expressões e interações cada vez mais fora da realidade exterior,
que o indivíduo altera por seguir a sua própria realidade original,
um afã angustiado, entristecido, desesperado, de alcançá-la, que se foi...

Ao contrário, se o indivíduo consegue deixá-la fluir, escorrer,
tornar-se-á, num canal livre, por onde passará, cada vez mais forte,
quiçá explodindo numa tranquilidade e harmonia vibrantes,
que deve ser lá aquele lugar que chamam de nirvana.




Francisco Vieira
02/09/10

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O Ser poeta


Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.
Charles Baudelaire




Ser poeta é ser assim, esquisito, alheio,
é ser aquele cara que chega quando todos vão embora,
e que vai embora quando todos chegam, óculos e boné.

Ser poeta é assistir a vida de camarote, coisa da qual
o sujeito economizou tudo, roupas, sapatos,
para assistir os pores de sol, o desabrochar das flores, o sorrir
das crianças que habitam adultos e se embevecer numa contemplação
que não pode ser explicada, tampouco entendida.
É morrer de compaixão, é amar largamente, inadequadamente,
tão insuportavelmente exagerado e melado,
rir e chorar, ser pisado por rastejar junto aos vermes,
ser ridicularizado por muxoxar a língua dos anjos.

Ser poeta é ver seus amigos deitarem toda a sua malevolência
por sobre seu corpo coberto das chagas que mostra em busca de empatia,
com o requinte sujo de quem nem tão secretamente se entretem.
É receber uma pedrada em pleno vôo parado, sorvendo néctar,
ser arrancado do solo quando suas raízes finalmente contornaram as pedras,
é chorar em pleno passeio público e receber na boca o cachimbo fétido e babado
de quem não possui asas.

O poeta quer tanto sentar-se para tomar chá e ser servido apenas por estar ali,
onde todos são servidos, onde todos têm uma pausa, onde todos tomam chá,
nas ruas de Paris, Roma, Londres, Madri ou Santos, onde chegam os barcos de pesca,
onde se deitam os peixes no mercado, onde os avós vivem na eternidade de si mesmos.

O poeta quer ser reconhecido como sujeito pacífico, e ser respeitado dessa maneira,
sem precisar fazer esforços para se proteger contra o fogo armado e explícito,
sem precisar quase morrer para evitar contato com as mãos espinhosas que o seviciam,
nem com as palavras, tão ditas, que o diminuem e o afundam e o amarguram.

O poeta não quer escrever, ele quer libertar-se dentro da própria Linguística,
quebrar-se dentro da Expressão, da Comunicação que nada diz de si mesmo,
quer, desesperadamente, dissociar Significantes e Significados, romper com a Semântica, com a Semiótica, com a Filosofia, com Mrs. Dolloway, no corpo de baile,

com a Dialética, com os Discursos, os Ensaios, Petrarca, Dante, Cecília Meireles:
quer quebrar os ossos últimos de Augusto dos Anjos no Pau D’Arco, parar de render
homenagens aos profetas e seus seguidores, parar de pagar impostos, mudar-se,
ir-se embora e morar na praia, mais precisamente dentro da sua concha, abrir-se ao mar,
e nunca mais ser importunado por causa da sua constituição gelada de molusco...


Francisco Vieira
30/08/10

Noli me tangere



É impressionante a visão do teu reinado:

onde tua voz tonitruante, embora baixa, alcança,
tudo se faz o silêncio e a obstinação da besta apavorada.

A quem te interpela o que queres esconder,
teu olhar metálico e bondoso cala, quiçá emudece,
numa curta cãibra eterna e dolorida, a língua.

Não dizes a ordem que obedecem todos que te ladeiam,
matando fundo quem ousa contra ti se inquirir,
com as armas mais vis, mais desprezíveis, mais procrastinadas:
a dúvida, a incredibilidade, a intriga muda...

Nessa tirânica passividade onde gordamente te sentas,
onde pouco expressas e sentes, ou falas,
morrem esmagadas a espontaneidade e a alegria alheia.

Embora não seja essa a visão trêmula e irritante,
que cega todo olho humano e comum:
mas a tristeza abismal onde calcas toda a tua arrogância.




Francisco Vieira
30/08/10

sábado, 28 de agosto de 2010

Anagrama

“The same old fears, whish you were here...”
Pink Floyd




A menina diz para o menino,
ele cabisbaixo, acocorado no chão, ela de pé:
“Chupa essa manga! Vou atrás dos meus morangos!”

Mentira
(no ato de chupar a manga assim,
sem faca, sem roupa, repleto de solidão e ausente de tempo,
não há como impedir que escorra o suco doce que escapa,
nascente na força das mãos contra a boca e a fruta,
pelo peito, barriga, umbigo, encharcando o púbis,
e pinga no chão, da ponta do prepúcio pêndulo,
num transbordamento que nutre o seio da terra)

Verdade
(enquanto manga e morango misturam seus segredos no liquidificador,
os amantes se dão, no chão da cozinha, absurdos tão reais,
confundindo corpos, sentindo as sensações provocadas no outro,
liquefazendo-se, espelhando o chão frio e vulgar piso, homem e mulher,
no suco surgido da contra força com que se apertam)


Francisco Vieira
28/08/10

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Aeronave (Airplane)

“Tonight they hunt for you…”
Goldfrapp





Enlouqueci: sou feliz,
igual a águia no seu retorno ao ninho,
vôo marcado, rítmico, que assume diferente velocidade
mais lenta, mais sentida, do que a quê se vê.
O ar não lhe fosse mais pesado, fosse feito de si mesma
então lhe oferecesse tanta e ideal textura e sustentação.
O vôo denso, como quem dança, de olhos fechados,
na sensação única de dançar e respirar, sem peso,
sem céu a lhe deter, nem terra a lhe lançar...

É quando lhes chega ao nariz aquele aroma,
que vem dos bolos que as donas de casa fazem no fim da tarde,
e os põe a esfriar na varanda, que as faz vibrar completamente, asa a asa.




Francisco Vieira
26/08/2010

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Bilhete

Eu vou embora
porque se me tornou insuportável ver
todo o amor, o carinho que dás para todos
e negas somente a mim





Francisco Vieira
24/08/2010

As Baratas

Mimi as mantem a uma distância significativa, desde que aprendeu a não temer mais as baratas, quando elas se ausentam assim esfomeadas dos seus esconderijos diurnos. Aquelas, que encontra, são pronta e certeiramente esmagadas com uma chinelada só, resultado da compreensão do seu ódio, da sua raiva, posto que os dois coexistem e não se anulam, dirigidos ao ponto certo, sem dispersão, sem alarde, quase sem emoção. Matar assim não configura um lugar monstruoso, visto deslocado agora corretamente o alvo da sua atitude para o inseto.
Matar exige um ódio que não comporta mais nenhuma outra reação, força que existe e preenche todo o espaço do ato. Respirar então, depois de afastada a ameaça definitivamente desta maneira, é sentir-se imortal. Não à fuga, não à convivência, não à tolerância, não à resignação: a força que começa numa inspiração e acaba na ponta do chinelo, enquanto o corpo expira: o ar assassino que grita e toma conta do indivíduo de forma incorruptível. Matar dessa maneira é divino e liberado: sem rancor, sem ofensa, sem remorso, sem carinho.
Não há a necessidade do aerossol infame que lhe envenenava a alma pouco a pouco. Só o ódio porém, como energia telúrica e metálica, torna fria e pesada a atmosfera ao redor de Mimi. Não importa o fato de que as baratas, na sua estupidez inseta, não possam compreender tão profundamente o perigo que correm saindo assim de suas tocas, afrontando a visão do ser que se acostumou com o belo. Estas baratas, fracas, moles, de cujo desprezível exoesqueleto se pode extrair queratina para o fabrico industrial de verniz, e que estala sob a pressão do pé de Mimi, naquele momento, que solta os cabelos enrolados em toca, refaz a maquiagem, mordendo a maçã. Não, o seu olhar não é de desprezo: nenhum desprezo, é mais desprezo para essa desalma cuja inferioridade fez parceria com a culpa, e cuja autoestima se encurva ao nível mais baixo. Chega a ser um acinte pensar que seria alvejada com a maçã. Chopin acaba de tocar Noturno, as sobras da maçã no lixo, uma borrifada de perfume, e Mimi sai, para seu encontro. Não antes, de pisar na última barata.



Francisco Vieira
24/08/2010

Loucura

Quanto mais eu me aprofundar na neurose
e entendê-la, com seus cálculos matemáticos imprecisos,
mais posso perceber em que outro lugar eu poderia estar.

Posso visitar esse lugar quantas vezes quiser,
ao sair e voltar da neurose adquirida,
ou da neurose fabricada para o meu bem estar.




Francisco Vieira
24/08/2010

II Aos Corintios 13:47

Não promete nada a ninguém,
A vida pode mudar o eixo e estarás preso.

Liberta teu espírito dentro do próprio corpo,
E que ele jamais seja seu cárcere.

Mata, inda que por uma questão de sobrevivência,
Sem o menor remorso, o menor pudor,
A fera indomada do interdito no teu ventre intrusa.

Assopra, com o vento da conquista, teu espírito,
Pelos sete mares do mundo e dá-lhe,
De presente, a toda gente que mora na praia...





Francisco Vieira
24/08/2010