terça-feira, 30 de março de 2010

Três estudos para um auto-retrato

Ei...
Você está aí?
Está precisando de mim?
Será que está preocupado se eu te amo?
Sim...
Olha, quero te avisar que você de nada tem culpa,
Que tudo está de acordo com o que eu sempre desejei...

Ei...
Você me ouve?
Está desfazendo de mim?
Será que está aborrecido com o meu amor?
Sim...
Olha, se você nada quiser me diga logo de uma vez,
Que tudo o que eu penso e faço soa falso e é ridículo...

Ei...
Você existe?
Está compadecendo-se de mim?
Será que o enxotei com a minha solidão?
Sim...
Olha, quero te avisar que você de nada tem culpa,
Que tudo está de acordo com o que eu sempre desejei...

Francisco Vieira
30/03/2010

Rota

É um acinte que essas pessoas no final da tarde tirem dos fornos seus bolos e os coloquem nas varandas para esfriar, enchendo nosso caminho de mornos cheiros comestíveis, e nem se dêem à gentileza de nos convidarem ao café, nós aves que voltamos de longe de nosso ninho pelo afã da caça e da coleta...

Francisco Vieira
30/03/2010

Rastro


Não fui eu quem disseminou aquilo na internet. Sim, eu tomo café muitas vezes durante o dia, mas café mesmo, muito de vez em quando... quando o café se torna uma experiência mística.
Quando eu preciso me apegar a minha essência de eu, no puro cerne, eu faço o café: fervo a água com canela em pau, ou me contento em colocá-la em pó ali, diretamente na xícara, passado o café, antes do açúcar, para que ele ajude-a submergir... mistura sagrada de açúcar, canela e café, é um clássico, que pode ser reeditado quantas vezes preciso for... e, para acompanhá-lo, sirvo-me pães, bolos, tortas, biscoitos, manteiga... a essência é aquela onde você pode se ver menino livre, sem nenhum sufocamento, sem nenhuma sanguinidade, na completa paz, e, num suspiro, sair daí.
Posso ir?

Francisco José
30/03/2010

terça-feira, 23 de março de 2010

Fantasia

O menino pega atalhos
o menino sujo, calcinado,
quer atalhos no céu de anil,
patina na praia, deixa-se cair,
o mar lambendo-lhe o corpinho nu...

O menino pesca atalhos,
o menino salgado, luzidio,
brinca com peixes no mar verde,
apalpa o infinito, projeta-se,
o mar sonhando-lhe o corpinho nu...

Gaivota passa, pássaro gentil,
o mar rodando-lhe o corpinho nu...

Francisco José
23/03/2010

segunda-feira, 22 de março de 2010

Quatro Atos

Os meus fantasmas vão se pôr,
Quando cessar esta extensa claridade
Do dia,
E a noite trouxer fim às sombras projetadas
Na parede

A minha dor vai ter fim
Quando eu gritar tão fundo que estoure o baixoventre,
De fúria,
E secando as minhas vísceras espalhadas
Na parede

A culpa vai me absolver
Quando ela morrer enfim na origem de si própria,
De dia,
E não reste sequer um retrato seu
Na parede

O remorso vai me expor ao resgate
Quando tornar-se poço de amargura tão preta que,
De dia,
Não reflita nem um fraco raio de sol
Na parede

Contudo,
Eu não morrerei...

Francisco José
22/03/2010

terça-feira, 16 de março de 2010

Encontro

Foi outro dia, estava lá, quieto, quando lembrei que, quando era criança, eu sempre olhava muito tempo para as coisas simples da vida... que subia na árvore e sentava nos seus galhos e olhava as formigas passarem, ou senti-las me morder. Que olhava longe, achando que aquele mundo era tão enorme – ali a “avenidona” que a gente pega quando vem da minha avó, e tinha tudo aquilo mais! Às vezes a noite caía, então me encolhia um pouco naqueles galhos queridos, generosos, protegido que estava de olhar a noite assim, no alto, na cara dela. Descia com fome, e comia: não precisava de mais nada. O tempo não contava para mim, não o sentia. Só eu era para mim. Só a minha companhia. Nada me cobrava, nem culpava, ingênuo, puro.
Então, me convidei a ver o sol se pôr, o dia sumir, a noite chegar. Então cheguei, sentei-me no chão, no quintal, no caminho das formigas. Eu trouxe bolinhos de chuva, com banana dentro, passados no açúcar com canela, recém saídos da frigideira. E eu estávamos tão felizes, que respirávamos profundamente. E comecei a ver as pequenas coisas, as despercebidas... olhei as rachaduras nos meus muros, os defeitos do piso no chão do meu quintal... as folhas rasgadas das palmeiras, sujas, outras secas... o céu nublado, cheio de imperfeições e saliências de nuvens cinzentas... meu corpo envelhecido, seco de quando em quando, a idade que não tinha última vez que aqui estive.
Eu estava bem... nada enfim precisava ser consertado, tudo é um ledo engano meu, conspiração minha - medo afinal. Eu me levanto e sigo. Eu fico, deitado, sobre o chão.

Francisco Vieira
16/03/2010

terça-feira, 9 de março de 2010

Per Sona

Quem é você amargo coração,
Coração, porta que não se abre
Quando bate um coração que chora...

Quem é você, estúpido culpado coração,
Chão que não se firma para passar
Um coração que coxeia...

Quem és tu, manchado, engelhado torpe coração,
Chuva que se lhe escapa, se faz cair menos perto,
Na sede de um coração traído...

Quem, diz agora, quem és tu?
Amarelecido, febril, trêmulo, fétido, coração,
Húmus vil que se lhe nega à raiz na procura bruta,
Sôfrega, faminta, cega, desesperada...

Quem és tu, coração medonho,
Falsa cara em cuja cara
Eu não reconheço a minha...?

Francisco José
09/03/2010