domingo, 26 de setembro de 2010

Eu não sabia que a Conceição ia me bater




Eu não preciso mais das tuas tetas para me alimentar,
eu junto coisas desconexas, desconjuntas,
para me ameaçar com a prodigalidade de um evento
díspare
que possa me transportar quilômetros daqui.

Nesse momento a vida na encruzilhada me pareceu ameaçadora,
agora que não tenho ninguém em quem me escorar,
as minhas carnes todas e as vísceras sendo arrancadas
pela força mandibular de uma fera na ânsia assassina esfomeada.

E digo que caminhei à toa, por aí, o vento no rosto e cabelos esvoaçando,
sem nenhum pudor em não ter nenhum constrangimento de não saber ao
certo
o meu destino - a procura não é o lugar onde se possa ir,
mas onde se possa estar, ficar, permancecer, independente de tudo,
que só é possível medir o valor quando despertado dentro de si do
indivíduo,

que passa a saber ao certo o que é sentir-se em liberdade...


Francisco Vieira
26/09/10

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Fruto da Paixão





A Elmo Serra Santana





Eu no fundo, carrego escura e dura a polpa da vida.
Atravesso dentes que me mastigam, estômagos que me fervem,
poderosos e absorventes tratos intestinais, e caio no solo defecado,
mas despertado por esse processo que me livrou da casca mais grossa no exterior,
e então agora posso absorver a umidade que vai dar vida ao princípio que eu carrego,
e que se transformará na planta aos cujos pés assistirei seu universo de nascimento,
crescimento, reprodução e morte, derretendo lentamente no meu processo contínuo lento.

Eu sou de luz!
Tenho sabor a cheiro de mar, horizonte, sol, areia e concha quebrada,
sou de amarelo, diáfana, flutuando nessa polpa minha própria delicadamente,
e meu cheiro inspira um beijo,
e envolvo com a minha leveza que enleva,
conservo-os numa acidez equilibrada, atípica dos ambientes digestíveis,
e sirvo apenas e humildemente às caras sementes às quais ofereço, seduzindo,
com meus aromas e sabores ácidos, picantes, e adocicados...

Eu sou quem se virou para dentro, dando as costas duras para o que não
fôsse–me eu mesmo, no escuro, assistindo esse balé de inquebráveis cascas,
que dançam dentro de uma bolsa de gel adocicado de bolhas dentro de bolhas,
virar uma ansiedade coletiva de se romperem, de cumprirem seu destino,
quanto estivermos todos muito maduros, então a luz vai entrar, me completando,
ao me clarear a visão de tudo aquilo que eu sempre acreditei que realmente houvesse,
os quais eu ofereço, no solo, rompida, a todos os animais e insetos que vierem
para libertá-las e depositarem-na no solo que lhe servirá de útero de terra.

Eu sou aquele que só pode ir para cima, porque quer, anseia e procura,
chegar em lugar nenhum, só pelo prazer de, na mais completa cegueira,
avançar sempre, sentindo apenas o prazer de buscar e conseguir,
abrindo meus braços que vão agarrando e se enroscando em todas as minhas conquistas,
dando-me suporte para receber a força que me vem lá da raiz, impulsionando,
rodopiando, cavalgando o nada, sentado no dorso da profunda e enigmática inexistência,
escalando o próprio futuro, deixando possibilidades de vida em cada oportunidade,
em cada lugar, em cada inspiração que eu conseguir, que eu galgar, até me faltar
a energia que me impulsiona da raiz, e eu parar, dar o último suspiro, e descansar enfim.

Eu me abro, ao espaço onde o ar acode interessado, o meu aroma,
doce, interessante, sedutor, cheio de luxúria maliciosa,
um cheiro vermelho de paixão, que incendeia e reverbera a atmosfera ao meu redor,
atraindo para o meu cálice todo inseto que quiser se lambuzar de aroma e doce,
os quais eu ofereço por conta do meu grito sensorial berrado,
e sacudindo-se meus estames e carpelos, enfim me engravidar, quando então
eu me abandonarei externamente, concentrando-me no meu ventre que passa
a existir por mim, que já sequei toda, durante o processo até a queda no solo.






Francisco Vieira
23/09/10

terça-feira, 21 de setembro de 2010

O Poeta




Bem, para vocês que não me conhecem, eu sou o Poeta,
nascido de catacúmbicas lembranças, instado a ser por avessos e chuleados,
alguém que não sabe muito bem e exatamente o que faz,
como se imagina,
e cuja sorte nem sempre tem pássaros que não sejam negros e pestilentos a segui-lo.

Sim senhores, este sou o Poeta e,
como o poema tem forma e a vida não,
como os girassóis cumprem sorridentes o seu destino de assistir ao sol,
as abelhas lotam excitadas, de mel, as suas colméias,
passarinhos terminam os seus ninhos, esperançosos,
quando tudo é mais tépido e úmido, e os dias mais compridos,
o Poeta muitas vezes está no quarto, vivendo as dores que lapidam pedras em carne,
cuspindo seus pulmões de quando em quando.

O Poeta sou esse,
quem cria versos como quem se enlouquece, se autoflagela,
respira fundo ainda quando a mão pontuda da dor lhe esgana,
resgata a luz para onde ainda havia treva dentro de si:
o Poeta, eu, é aquele que se revela as entranhas a luz do dia.

Portanto, quando disser das pérolas e das turmalinas,
das catleyas e das rosas, dos beija-flores, das borboletas,
espalhando uma sucessão de cores e aromas e texturas,
lembrem-se
aquilo é o sangue negro, que o poeta carrega nas veias e o enche de dor,
transubstancializado.




Francisco Vieira
21/09/10

Emeraude



Nos instantes em que nada anseia ser dito,
quando há apenas o sentimento que precisa e se quer expressar,
a receita sugere o uso das palavras com parcimônia.

Como as claras que se batem até a neve,
e que sustentam toda a leveza da mousse,
palavras servirão de veículo às ideias,
que serão sorvidas delicadamente,
e se depositarão, esperando, calma e fracionadamente,
por toda a língua, espalhando, o sabor do chocolate.

Isso, claro, quando o olhar não mais for excelente
em revelar a real paixão das intenções,
quando elas soçobram no patamar de serem inundadas
por lágrimas que chegam de saveiro, catarticamente,
quando se experimenta o crème brûlée.




Francisco Vieira
20/09/10

domingo, 19 de setembro de 2010

Diálogo de gramáticos





- Acabei de sair de uma situação
onde eu era uma subordinada adjetiva restritiva, cansei.

- Ah sim, eu também agora procuro
alguém que seja coordenada comigo na vida.

- É mesmo?
Posso ser sua sindética?

- De uma forma gentil preciso dizer que não,
eu procuro outra assindética.




Francisco Vieira
19/09/10

Superfluidade


Morreria de qualquer jeito, morreria.

E mesmo que eu me houvesse sobrevivido,

inda assim morreria,
porque é igual a toda a tristeza do mundo,
reunida,
a dor de não ser aceito pela mãe.

Então eu não nasci

mas eu mesmo, quase, me matei.




Francisco Vieira

19/09/10

sábado, 18 de setembro de 2010

Zeelia




Eu não quero mais amar a flor,
que se escapole do cálice depois de tempos aberta,
porque se dá longamente ao sabor da brisa,
que se brinca dela desconjunta enquanto vai ao chão...

Eu não quero mais amar a flor,
cujos veludos se escondem mais escuros,
e da timidez das suas reentrâncias e concavidades perfumadas
conclamam abelhas excitadas de desejos luxuriantes...

Eu não quero amar a flor,
que aromatiza as gotas de orvalho sobre suas pétalas,
só por brincadeira, por criatividade, por investimento,
e que soltam no ar os perfumes recolhidos em cada bordado sensorial...

Eu quero amar a flor,
essa criatura diáfana e aquosa, tecida em perfume e maciez,
que me espanta a tristeza e me põe pleno e feliz, radiante,
mas que se solta a alma em essência, suavidade e carmim...




Francisco Vieira
19/09/10

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Vida





Eu,
que já me senti superior a ti,
que já experimentei a loucura absurda da possibilidade remota de ter te vencido...

que fui cansando e vendo com cada vez mais clareza onde estou:
aqui no chão
de barriga exposta as tuas mandíbulas poderosas,
as patas enormes me prendendo braços e pernas,
enquanto vou calando meu último grito,
no aterrorizante olhar impassível com que me fitas
- eu peço somente isso, numa última tentativa de negociar nossa dívida:
Não tenhas pena de mim!




Francisco Vieira
07/09/10

Delfinópolis VIII


Cheguei á fonte muito cansado, no alto do morro,
subindo as cachoeiras inclementes, escalando
entre mordidas e picadas, e tudo parece tão silente
que me envergonha a respiração gulosa com que mordo o ar.

Por entre o capim mimoso surge a água tranquila
que escorre docemente vinda do ventre profundo da terra,
até o primeiro e pequeno dique, ali, onde se formou um jardim subaquático,
com peixinhos alegres nadando entre espirais de algas,
e pedaçinhos de argila salpicando o fundo branco marmóreo.

Cheguei quando a dona da casa não estava, mas trouxe presente:
uma sombrinha florida, da altura de um palmo, feito com bambu,
já que o ouro seria o único metal bem vindo aqui.

O presente do ano passado está lá, do lado de fora da casa,
uma sacola de compras, exatamente como eu o deixei.
Os outros presentes também estão lá, todos enfileirados.

Aqui é um lugar onde eu preciso voltar sempre.
Passarinho voou, avisando que ela chegaria tarde,
e se foi, de volta para a sua solidão junto de outros passarinhos,
nas árvores onde descansam o afã da caça e do vôo constantes.

Eu vou descer o caminho por onde as águas se vão apressadas,
não antes primeiro de descansarem naquele singelo jardim,
recém nascidas, recém escapadas, recém iluminadas, recém respirando...
esperando firmarem-se para a longa caminhada até o oceano.



Francisco Vieira
06/09/10

Delfinópolis VII


Écologique

Ai dona Mutuca!
A senhora passa a vida inteira aqui,
bebendo aguinha, esperando chegar
um animal de sangue quente.
(Tantas como você morrem sem tal chance na vida,
o ápice da sua curta existência.)
Aí chego eu, da cidade, ofertando minha canela doce,
mato você com um tapa, e jogo seu corpo na água
que agora lhe bebe.


Francisco Vieira
06/09/10

Delfinópolis VI


Cachoeira



E se eu pudesse criar um funil com fogo na ponta menor,
que fosse capaz de receber o jorro do vento
e, ainda assim continuar aceso,
que criação seria essa?


Francisco Vieira
06/09/10

Delfinópolis V


Diálogo




Fran:
- A gota de veneno que não te mata é a mesma que me cura.


Minisa:
- E a gota de veneno que não mata ninguém, é uma farsa?
Qual é o oposto do veneno?
Ou será que o veneno não tem concorrentes?



Francisco Vieira
05/09/10

Delfinópolis IV


Futuro


À Minisa Napolitano



Existe aquele momento pequeno em que ficas jogado no ar,
e cais na sela que sustenta teu corpo frágil, mole, nu,
até que o cavalo pouse novamente no chão íngreme e pedregoso da descida feroz,
que em vão tentas enxergar na escuridão viscosa, por onde és levado,
quando geralmente a pedra onde ele fixará a pata,
antes do próximo passo, não é aquela que escolherias,
entre a tontura do trote vigoroso, quiçá de lado, escorregando,
dentro da insegurança da queda e a força do lombo que te sustenta.

Nessa inevitabilidade, simplesmente soltas o corpo, de olhos fechados,
respirando, abdicando do medo e cedendo ao prazer, e abrindo-os novamente,
desejosos de conhecerem o caminho, o cavalo retribuirá com mais dança
a liberdade que dás a ele.


Francisco Vieira
06/09/10

Delfinópolis III


Ladrão


Eu tenho buscado olhares.
Fico à espreita quando alguém passa
e insisto até ter retribuído o olhar.
Sim, eu os roubo, mas porque ninguém mos dá.


Francisco Vieira
04/09/10

Delfinópolis II


Diatomáceas



Por favor não me segure,
sou nascida entre a pedra e a água,
nada me retem, nada me prende.

Vá, por favor me solte,
nasci de forma a ser alada,
por dentro da água onde existo

vá, deixe-me ir, que o sabor
da corrente vai depositar-me onde
bem será melhor para mim.

Quem sabe assim poderemos nos reencontrar...


Francisco Vieira
04/09/10

Delfinópolis I


Silabada



O melhor de se ter um amigo hétero
é deixa-lo enquanto ele se arranja com aquela menina,
e, longe da visão dele,
ir ao encontro do rapaz que te olha em segredo
e para o qual a sua ereção se ergueu.


Francisco Vieira
04/09/10

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

O Avesso do poema (chama-se flor, do lado direito)

A realidade exterior construída pelo indivíduo,
parte da própria realidade interna,
moldando o mundo em sua plasticidade exata,
e nele interagindo de forma totalmente integrada.

A loucura é uma força que existe, uma energia, uma luz
que, se o indivíduo, dentro de si próprio, a contiver estagnada,
incitará seu crescimento, mais e mais, e a pressão que ela fará no interior
alterará a realidade interna que crescerá para acolher aquela massa.

Com o sujeito interno e sua realidade alterados, o indivíduo
vai tendo expressões e interações cada vez mais fora da realidade exterior,
que o indivíduo altera por seguir a sua própria realidade original,
um afã angustiado, entristecido, desesperado, de alcançá-la, que se foi...

Ao contrário, se o indivíduo consegue deixá-la fluir, escorrer,
tornar-se-á, num canal livre, por onde passará, cada vez mais forte,
quiçá explodindo numa tranquilidade e harmonia vibrantes,
que deve ser lá aquele lugar que chamam de nirvana.




Francisco Vieira
02/09/10

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

O Ser poeta


Le Poète est semblable au prince des nuées
Qui hante la tempête et se rit de l'archer;
Exilé sur le sol au milieu des huées,
Ses ailes de géant l'empêchent de marcher.
Charles Baudelaire




Ser poeta é ser assim, esquisito, alheio,
é ser aquele cara que chega quando todos vão embora,
e que vai embora quando todos chegam, óculos e boné.

Ser poeta é assistir a vida de camarote, coisa da qual
o sujeito economizou tudo, roupas, sapatos,
para assistir os pores de sol, o desabrochar das flores, o sorrir
das crianças que habitam adultos e se embevecer numa contemplação
que não pode ser explicada, tampouco entendida.
É morrer de compaixão, é amar largamente, inadequadamente,
tão insuportavelmente exagerado e melado,
rir e chorar, ser pisado por rastejar junto aos vermes,
ser ridicularizado por muxoxar a língua dos anjos.

Ser poeta é ver seus amigos deitarem toda a sua malevolência
por sobre seu corpo coberto das chagas que mostra em busca de empatia,
com o requinte sujo de quem nem tão secretamente se entretem.
É receber uma pedrada em pleno vôo parado, sorvendo néctar,
ser arrancado do solo quando suas raízes finalmente contornaram as pedras,
é chorar em pleno passeio público e receber na boca o cachimbo fétido e babado
de quem não possui asas.

O poeta quer tanto sentar-se para tomar chá e ser servido apenas por estar ali,
onde todos são servidos, onde todos têm uma pausa, onde todos tomam chá,
nas ruas de Paris, Roma, Londres, Madri ou Santos, onde chegam os barcos de pesca,
onde se deitam os peixes no mercado, onde os avós vivem na eternidade de si mesmos.

O poeta quer ser reconhecido como sujeito pacífico, e ser respeitado dessa maneira,
sem precisar fazer esforços para se proteger contra o fogo armado e explícito,
sem precisar quase morrer para evitar contato com as mãos espinhosas que o seviciam,
nem com as palavras, tão ditas, que o diminuem e o afundam e o amarguram.

O poeta não quer escrever, ele quer libertar-se dentro da própria Linguística,
quebrar-se dentro da Expressão, da Comunicação que nada diz de si mesmo,
quer, desesperadamente, dissociar Significantes e Significados, romper com a Semântica, com a Semiótica, com a Filosofia, com Mrs. Dolloway, no corpo de baile,

com a Dialética, com os Discursos, os Ensaios, Petrarca, Dante, Cecília Meireles:
quer quebrar os ossos últimos de Augusto dos Anjos no Pau D’Arco, parar de render
homenagens aos profetas e seus seguidores, parar de pagar impostos, mudar-se,
ir-se embora e morar na praia, mais precisamente dentro da sua concha, abrir-se ao mar,
e nunca mais ser importunado por causa da sua constituição gelada de molusco...


Francisco Vieira
30/08/10

Noli me tangere



É impressionante a visão do teu reinado:

onde tua voz tonitruante, embora baixa, alcança,
tudo se faz o silêncio e a obstinação da besta apavorada.

A quem te interpela o que queres esconder,
teu olhar metálico e bondoso cala, quiçá emudece,
numa curta cãibra eterna e dolorida, a língua.

Não dizes a ordem que obedecem todos que te ladeiam,
matando fundo quem ousa contra ti se inquirir,
com as armas mais vis, mais desprezíveis, mais procrastinadas:
a dúvida, a incredibilidade, a intriga muda...

Nessa tirânica passividade onde gordamente te sentas,
onde pouco expressas e sentes, ou falas,
morrem esmagadas a espontaneidade e a alegria alheia.

Embora não seja essa a visão trêmula e irritante,
que cega todo olho humano e comum:
mas a tristeza abismal onde calcas toda a tua arrogância.




Francisco Vieira
30/08/10