sábado, 28 de agosto de 2010

Anagrama

“The same old fears, whish you were here...”
Pink Floyd




A menina diz para o menino,
ele cabisbaixo, acocorado no chão, ela de pé:
“Chupa essa manga! Vou atrás dos meus morangos!”

Mentira
(no ato de chupar a manga assim,
sem faca, sem roupa, repleto de solidão e ausente de tempo,
não há como impedir que escorra o suco doce que escapa,
nascente na força das mãos contra a boca e a fruta,
pelo peito, barriga, umbigo, encharcando o púbis,
e pinga no chão, da ponta do prepúcio pêndulo,
num transbordamento que nutre o seio da terra)

Verdade
(enquanto manga e morango misturam seus segredos no liquidificador,
os amantes se dão, no chão da cozinha, absurdos tão reais,
confundindo corpos, sentindo as sensações provocadas no outro,
liquefazendo-se, espelhando o chão frio e vulgar piso, homem e mulher,
no suco surgido da contra força com que se apertam)


Francisco Vieira
28/08/10

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Aeronave (Airplane)

“Tonight they hunt for you…”
Goldfrapp





Enlouqueci: sou feliz,
igual a águia no seu retorno ao ninho,
vôo marcado, rítmico, que assume diferente velocidade
mais lenta, mais sentida, do que a quê se vê.
O ar não lhe fosse mais pesado, fosse feito de si mesma
então lhe oferecesse tanta e ideal textura e sustentação.
O vôo denso, como quem dança, de olhos fechados,
na sensação única de dançar e respirar, sem peso,
sem céu a lhe deter, nem terra a lhe lançar...

É quando lhes chega ao nariz aquele aroma,
que vem dos bolos que as donas de casa fazem no fim da tarde,
e os põe a esfriar na varanda, que as faz vibrar completamente, asa a asa.




Francisco Vieira
26/08/2010

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Bilhete

Eu vou embora
porque se me tornou insuportável ver
todo o amor, o carinho que dás para todos
e negas somente a mim





Francisco Vieira
24/08/2010

As Baratas

Mimi as mantem a uma distância significativa, desde que aprendeu a não temer mais as baratas, quando elas se ausentam assim esfomeadas dos seus esconderijos diurnos. Aquelas, que encontra, são pronta e certeiramente esmagadas com uma chinelada só, resultado da compreensão do seu ódio, da sua raiva, posto que os dois coexistem e não se anulam, dirigidos ao ponto certo, sem dispersão, sem alarde, quase sem emoção. Matar assim não configura um lugar monstruoso, visto deslocado agora corretamente o alvo da sua atitude para o inseto.
Matar exige um ódio que não comporta mais nenhuma outra reação, força que existe e preenche todo o espaço do ato. Respirar então, depois de afastada a ameaça definitivamente desta maneira, é sentir-se imortal. Não à fuga, não à convivência, não à tolerância, não à resignação: a força que começa numa inspiração e acaba na ponta do chinelo, enquanto o corpo expira: o ar assassino que grita e toma conta do indivíduo de forma incorruptível. Matar dessa maneira é divino e liberado: sem rancor, sem ofensa, sem remorso, sem carinho.
Não há a necessidade do aerossol infame que lhe envenenava a alma pouco a pouco. Só o ódio porém, como energia telúrica e metálica, torna fria e pesada a atmosfera ao redor de Mimi. Não importa o fato de que as baratas, na sua estupidez inseta, não possam compreender tão profundamente o perigo que correm saindo assim de suas tocas, afrontando a visão do ser que se acostumou com o belo. Estas baratas, fracas, moles, de cujo desprezível exoesqueleto se pode extrair queratina para o fabrico industrial de verniz, e que estala sob a pressão do pé de Mimi, naquele momento, que solta os cabelos enrolados em toca, refaz a maquiagem, mordendo a maçã. Não, o seu olhar não é de desprezo: nenhum desprezo, é mais desprezo para essa desalma cuja inferioridade fez parceria com a culpa, e cuja autoestima se encurva ao nível mais baixo. Chega a ser um acinte pensar que seria alvejada com a maçã. Chopin acaba de tocar Noturno, as sobras da maçã no lixo, uma borrifada de perfume, e Mimi sai, para seu encontro. Não antes, de pisar na última barata.



Francisco Vieira
24/08/2010

Loucura

Quanto mais eu me aprofundar na neurose
e entendê-la, com seus cálculos matemáticos imprecisos,
mais posso perceber em que outro lugar eu poderia estar.

Posso visitar esse lugar quantas vezes quiser,
ao sair e voltar da neurose adquirida,
ou da neurose fabricada para o meu bem estar.




Francisco Vieira
24/08/2010

II Aos Corintios 13:47

Não promete nada a ninguém,
A vida pode mudar o eixo e estarás preso.

Liberta teu espírito dentro do próprio corpo,
E que ele jamais seja seu cárcere.

Mata, inda que por uma questão de sobrevivência,
Sem o menor remorso, o menor pudor,
A fera indomada do interdito no teu ventre intrusa.

Assopra, com o vento da conquista, teu espírito,
Pelos sete mares do mundo e dá-lhe,
De presente, a toda gente que mora na praia...





Francisco Vieira
24/08/2010

domingo, 22 de agosto de 2010

Interlocutores

A Friedrich Nietzsche


"Even the greatest stars discover themselves in the looking glass..."



Os meus interlocutores são as pessoas dispersas num mar de agito raciocínico,
os meus interlocutores são aqueles que não respondem, e que sequer escutaram!
Honestos interlocutores: quem sou eu para vos dizer?

Diz a prosa fátua, descoberta, na tua voz grave, velutina,
toda a pomposidade de nada ser, nada parecer,
galgando o ar dos campos por prazer, por necessidade, por respirar.

Aos meus interlocutores eu nada digo de mim, nada digo de nada,
pois meus interlocutores os são, não porque se interessam por mim,
não porque me acolhem: eu os escolho assim, de qualquer maneira...

Diz do penhasco infindo por onde rola tua carapaça assim arrancada
pelo vento, que desce, decidido, deixando-te nu, gelatinoso,
no aporte exato onde tudo esfarela, onde nada pode estar.

- a parte da estrela que olha com ternura o rosto do seu irmão,
a parte terna é pela descoberta do seu próprio rosto no rosto do seu irmão.



Francisco Vieira
21/08/2010

sábado, 21 de agosto de 2010

Mors-Amor

“Para quem quer se soltar,
invento o cais...”
Milton Nascimento



Na película que me separa da confusão total do exterior,
que protege minha pequena organização conjunta,
identifico uma possível margem onde um saveiro espera,
do lado de fora, na paisagem ocre dissociada.

Um suspiro sobe inconsequente e autômato até minha garganta,
que projeta-o fora do meu corpo, escapando para a escuridão,
revoltando este interior inflado, que quer sair, quer nascer
- um grito apavorado se me escapa, reverberando tudo a sua passagem.

Ainda sob o efeito desse estrépito quente e vibrante,
recolho-me todo da periferia no sentido de conter-me no mais interior da gema
de acalmar esse ambiente agora perturbado, cheio de ondas,
que não se aquieta, que mais se revolta, que se rompe na minha explosão:

No meu próximo momento de possível percepção, possível consciência,
A paisagem ocre originou a noite azul marinho, dissolvida na clara, onde desliza minha embarcação,
não sei quem sou e onde estão meus novos limites, não sei para onde vou,
inclusive não sei mais o que é caos, o que é constituição.
Não me governo mais, parado, calado, e o movimento é inerente a minha vontade.



Francisco Vieira
19/08/2010

Explicação

O poema não nasce na forma
por isso o poema não tem forma
não tem fôrma,
não tem nada!

Francisco Vieira
20/08/2010

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Aranha

A necessidade vigorosa que eu tinha,
que com tentáculos poderosos exigia
as presenças amadas por perto...

Aqueci-me sozinho no sol de mim mesmo:
levei-me à praia, ali no azul macio e murmurante,
e lhe apresentei o mar, sentados na praia.

Paragens distantes, cortadas pelo suor da areia
esculpindo o ar com caneta de calor, mostram:
amigos, sorrindo, bastantes, vem vindo...

Agora posso sentir na minha luz que se expande,
amigos quiçá distantes, de quem saudades eu senti,
que agora nos encontramos nas estradas do acaso feliz.



Francisco Vieira
19/08/2010

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

De Profundis

Existe entrega mais profunda
que aquela dentro do colo do útero,
de ceder o próprio corpo
para receber o filho desse homem que me beija
e agora, justamente agora, quanto então tanto amor
se ejacula, se transborda, se liberta, se alivia:
nesse exato momento em que ele me olha fundo,
me penetra mais uma vez, me vê por dentro:
eu também o vejo, porque ele se mostra.

Existe entrega mais profunda
do que aquela que se origina do próprio ventre,
cuja força involuntária o projeta mais e mais alto,
ventre esse que se espande e tão fundo penetra,
ter a recebê-lo outro corpo molinho, dado, solto,
que todo se excita por suportar tamanha carga:
o prazer de ter a receber tanta intimidade, tanta virilidade
esse corpo de mulher submisso por baixo do meu.



Francisco Vieira
12/08/10

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Caos

é o que acontece
quando se lê poemas
em folhas soltas
durante a queda livre:

as folhas não se sustentarão
e o poema voltará a sua forma original
captada pela escrita
momentaneamente

Francisco José
06/08/10

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Oração

Hoje olhei para algumas plantinhas
que eu cultivo em vasos e recipientes especiais
e, como aos Santos no altar, eu supliquei:
“Desculpa-me não ter dado, nós últimos tempos,
a atenção que certamente seria indispensável ao teu bem estar,
com regas constantes, olhar feliz e orgulhoso...
tenho tanto precisado dessa energia toda só para mim!
E ainda agora venho até vós, abrindo meu peito
cheio de impressões ruins e sentimentos lodacentos,
curai-me! Transcendei os sensações tristes do meu coração,
curvado diante de si no escuro por tanto tempo, chorando,
transformai esses elementos noturnos num cacho de um Dendobrium Spectabilis...

Sim, eu peço muito:
e guia-me ainda, ó Natureza, assim como tens feito sempre,
- lembrando-me de meus Orixás, meus antepassados –
orienta-me pelos caminhos menos dolorosos
já que, não importa nunca o que eu esteja fazendo,
jamais deixarei de acompanh-ar-te nos teus caminhos!”

Francisco José
09/08/10

sábado, 7 de agosto de 2010

Polviho Azedo

Polvilho Azedo


Onde você está?
Na distância do meu eco moribundo,
na vastidão da minha incompleta solidão,
no desvalor que me imponho todo dia, desde o nascer do sol,
onde nada brota na pedra árida, na areia seca, na poeira fina,
eu clamo a tua vinda, eu brado pela tua vida!

Eu quero você junto a mim, vem!
A minha paisagem há de se nutrir da sua vinda,
A minha desesperança há de se acomodar na sua vida.

Não tente me convencer do contrário.

Francisco Vieira
07/08/10

Perdoa-me (Eu descendo os degraus)

Ato I


A extensão do que para mim é a expressão máxima de toda tua miséria humana
e que então dispõe toda a minha frágil tentativa delirante
de não terminar os dias que me findam na tua companhia.
De não te adivinhar nas fímbrias mais recônditas da alma minha,
de te reconhecer na sordidez onde possa mergulhar, a mais canalha,
de ver o teu rosto em fim no espelho onde me procuro no reflexo!

Não te odeio.
Nem sequer tenho desafeto por você:

eu não suporto me enxergar desta forma na clareza excessiva da luz que vem de você.

Francisco Vieira
07/08/10

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Andorinha

Passarinho, molhado do suor das minhas mãos,
arfante, livre dos meus diafragmáticos dedos,
quebrado, recompondo-se da fragilidade instantânea,
momentânea, despertada na retirada dos grilhões,
vai...

Termina teu despertar no vento, na aragem,
seca finalmente tua plumagem,
perdoa só agora ter entendido que não te libertando,
não permitiria a vinda de outros!
E eu me perdoarei também.


Francisco Vieira
05/08/10

Quinto Ato

Cansei
de fingir que possuía
no pavor de não permitir ser possuído.
Quero agora que alguém me pertença
que alguém me tenha, me conquiste,
vá buscar-me, me alce, me queira no sentido último dessa querência:
quero ser passivo.




Francisco Vieira
05/08/10