terça-feira, 24 de agosto de 2010

As Baratas

Mimi as mantem a uma distância significativa, desde que aprendeu a não temer mais as baratas, quando elas se ausentam assim esfomeadas dos seus esconderijos diurnos. Aquelas, que encontra, são pronta e certeiramente esmagadas com uma chinelada só, resultado da compreensão do seu ódio, da sua raiva, posto que os dois coexistem e não se anulam, dirigidos ao ponto certo, sem dispersão, sem alarde, quase sem emoção. Matar assim não configura um lugar monstruoso, visto deslocado agora corretamente o alvo da sua atitude para o inseto.
Matar exige um ódio que não comporta mais nenhuma outra reação, força que existe e preenche todo o espaço do ato. Respirar então, depois de afastada a ameaça definitivamente desta maneira, é sentir-se imortal. Não à fuga, não à convivência, não à tolerância, não à resignação: a força que começa numa inspiração e acaba na ponta do chinelo, enquanto o corpo expira: o ar assassino que grita e toma conta do indivíduo de forma incorruptível. Matar dessa maneira é divino e liberado: sem rancor, sem ofensa, sem remorso, sem carinho.
Não há a necessidade do aerossol infame que lhe envenenava a alma pouco a pouco. Só o ódio porém, como energia telúrica e metálica, torna fria e pesada a atmosfera ao redor de Mimi. Não importa o fato de que as baratas, na sua estupidez inseta, não possam compreender tão profundamente o perigo que correm saindo assim de suas tocas, afrontando a visão do ser que se acostumou com o belo. Estas baratas, fracas, moles, de cujo desprezível exoesqueleto se pode extrair queratina para o fabrico industrial de verniz, e que estala sob a pressão do pé de Mimi, naquele momento, que solta os cabelos enrolados em toca, refaz a maquiagem, mordendo a maçã. Não, o seu olhar não é de desprezo: nenhum desprezo, é mais desprezo para essa desalma cuja inferioridade fez parceria com a culpa, e cuja autoestima se encurva ao nível mais baixo. Chega a ser um acinte pensar que seria alvejada com a maçã. Chopin acaba de tocar Noturno, as sobras da maçã no lixo, uma borrifada de perfume, e Mimi sai, para seu encontro. Não antes, de pisar na última barata.



Francisco Vieira
24/08/2010

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