quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Vida





Eu,
que já me senti superior a ti,
que já experimentei a loucura absurda da possibilidade remota de ter te vencido...

que fui cansando e vendo com cada vez mais clareza onde estou:
aqui no chão
de barriga exposta as tuas mandíbulas poderosas,
as patas enormes me prendendo braços e pernas,
enquanto vou calando meu último grito,
no aterrorizante olhar impassível com que me fitas
- eu peço somente isso, numa última tentativa de negociar nossa dívida:
Não tenhas pena de mim!




Francisco Vieira
07/09/10

Delfinópolis VIII


Cheguei á fonte muito cansado, no alto do morro,
subindo as cachoeiras inclementes, escalando
entre mordidas e picadas, e tudo parece tão silente
que me envergonha a respiração gulosa com que mordo o ar.

Por entre o capim mimoso surge a água tranquila
que escorre docemente vinda do ventre profundo da terra,
até o primeiro e pequeno dique, ali, onde se formou um jardim subaquático,
com peixinhos alegres nadando entre espirais de algas,
e pedaçinhos de argila salpicando o fundo branco marmóreo.

Cheguei quando a dona da casa não estava, mas trouxe presente:
uma sombrinha florida, da altura de um palmo, feito com bambu,
já que o ouro seria o único metal bem vindo aqui.

O presente do ano passado está lá, do lado de fora da casa,
uma sacola de compras, exatamente como eu o deixei.
Os outros presentes também estão lá, todos enfileirados.

Aqui é um lugar onde eu preciso voltar sempre.
Passarinho voou, avisando que ela chegaria tarde,
e se foi, de volta para a sua solidão junto de outros passarinhos,
nas árvores onde descansam o afã da caça e do vôo constantes.

Eu vou descer o caminho por onde as águas se vão apressadas,
não antes primeiro de descansarem naquele singelo jardim,
recém nascidas, recém escapadas, recém iluminadas, recém respirando...
esperando firmarem-se para a longa caminhada até o oceano.



Francisco Vieira
06/09/10

Delfinópolis VII


Écologique

Ai dona Mutuca!
A senhora passa a vida inteira aqui,
bebendo aguinha, esperando chegar
um animal de sangue quente.
(Tantas como você morrem sem tal chance na vida,
o ápice da sua curta existência.)
Aí chego eu, da cidade, ofertando minha canela doce,
mato você com um tapa, e jogo seu corpo na água
que agora lhe bebe.


Francisco Vieira
06/09/10

Delfinópolis VI


Cachoeira



E se eu pudesse criar um funil com fogo na ponta menor,
que fosse capaz de receber o jorro do vento
e, ainda assim continuar aceso,
que criação seria essa?


Francisco Vieira
06/09/10

Delfinópolis V


Diálogo




Fran:
- A gota de veneno que não te mata é a mesma que me cura.


Minisa:
- E a gota de veneno que não mata ninguém, é uma farsa?
Qual é o oposto do veneno?
Ou será que o veneno não tem concorrentes?



Francisco Vieira
05/09/10

Delfinópolis IV


Futuro


À Minisa Napolitano



Existe aquele momento pequeno em que ficas jogado no ar,
e cais na sela que sustenta teu corpo frágil, mole, nu,
até que o cavalo pouse novamente no chão íngreme e pedregoso da descida feroz,
que em vão tentas enxergar na escuridão viscosa, por onde és levado,
quando geralmente a pedra onde ele fixará a pata,
antes do próximo passo, não é aquela que escolherias,
entre a tontura do trote vigoroso, quiçá de lado, escorregando,
dentro da insegurança da queda e a força do lombo que te sustenta.

Nessa inevitabilidade, simplesmente soltas o corpo, de olhos fechados,
respirando, abdicando do medo e cedendo ao prazer, e abrindo-os novamente,
desejosos de conhecerem o caminho, o cavalo retribuirá com mais dança
a liberdade que dás a ele.


Francisco Vieira
06/09/10

Delfinópolis III


Ladrão


Eu tenho buscado olhares.
Fico à espreita quando alguém passa
e insisto até ter retribuído o olhar.
Sim, eu os roubo, mas porque ninguém mos dá.


Francisco Vieira
04/09/10

Delfinópolis II


Diatomáceas



Por favor não me segure,
sou nascida entre a pedra e a água,
nada me retem, nada me prende.

Vá, por favor me solte,
nasci de forma a ser alada,
por dentro da água onde existo

vá, deixe-me ir, que o sabor
da corrente vai depositar-me onde
bem será melhor para mim.

Quem sabe assim poderemos nos reencontrar...


Francisco Vieira
04/09/10

Delfinópolis I


Silabada



O melhor de se ter um amigo hétero
é deixa-lo enquanto ele se arranja com aquela menina,
e, longe da visão dele,
ir ao encontro do rapaz que te olha em segredo
e para o qual a sua ereção se ergueu.


Francisco Vieira
04/09/10